“Os interesses coletivos deveriam prevalecer sobre os individuais”, diz novo presidente da Funatura, Braulio Dias

Por Funatura

26 de maio de 2020

Professor Doutor Braulio Dias: à frente da Funatura desde maio de 2020. Foto: Mara Lúcia Ferreira Dias

O novo diretor-presidente da Funatura, Braulio Ferreira de Souza Dias, nomeado este mês (maio 2020), é um antigo parceiro da instituição. Com extenso currículo e forte atuação na área ambiental, o biólogo foi um dos coordenadores da proposta de criação do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, entre outras unidades de conservação no Bioma Cerrado. Em entrevista, aponta o quanto a degradação ambiental é consequência do individualismo que assola a sociedade e quais caminhos podemos seguir para melhorar esse quadro.

Braulio Dias graduou-se em Ciências Biológicas pela Universidade de Brasília em 1975, onde atua como professor adjunto desde 1982, inicialmente no Departamento de Engenharia Florestal e depois no Departamento de Ecologia. Fez doutorado em Zoologia pela University of Edinburgh em 1981. Foi pesquisador da Reserva Ecológica do IBGE em Brasília entre 1978 e 2011. Tem desenvolvido pesquisas sobre a biodiversidade e ecologia do Bioma Cerrado: estabeleceu e coordenou um grande projeto experimental de ecologia do fogo no Cerrado e coordenou a Iniciativa Global de Polinizadores e a Iniciativa Brasileira de Polinizadores.

O biólogo atua na interface entre ciência e políticas públicas de conservação da biodiversidade. Ocupou alguns cargos no Ministério do Meio Ambiente (MMA) – diretor de pesquisa do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais (Ibama), diretor de Conservação da Biodiversidade e secretário nacional de Biodiversidade e Florestas. Coordenou a criação do Fundo Brasileiro para Biodiversidade (Funbio) em 1996.

No âmbito internacional, participou das delegações brasileiras de negociação na Convenção sobre Diversidade Biológica entre 1991 e 2011 e foi secretário executivo da Convenção sobre Diversidade Biológica da Organização das Nações Unidas entre fevereiro de 2012 e fevereiro de 2017.

Atualmente, é presidente do conselho global da Birdlife International, membro do conselho da Aliança da Bioversity International e do Centro Internacional de Agricultura Tropical, além do comitê consultivo do programa global de pesquisa sobre sustentabilidade Future Earth e do Conselho Externo de Sustentabilidade da Bayer. Participa do também conselho de organizações conservacionistas brasileiras – Instituto Life (Curitiba), SAVE Brasil (São Paulo), Fundação Biodiversitas (Belo Horizonte), Fundação Amazonas Sustentável (Manaus) e Fundação Pró-Natureza (Funatura), da qual é membro fundador e, agora, seu novo diretor-presidente.

Confira abaixo a entrevista.

Braulio, o Sr. defende o meio ambiente saudável desde sempre. O que está faltando, na mentalidade das pessoas em geral, para que ações cotidianas de ecologia aplicada, digamos assim, sejam tomadas?

Para falar do meio ambiente, primeiro temos que entender que, com o aumento da população humana, saímos de pequenas organizações sociais, em que havia o interesse em garantir o bem coletivo, para viver em comunidades cada vez maiores e depois em cidades e nações – como a brasileira, de escala continental, com mais de 210 milhões de habitantes. Então, o conflito entre os interesses individual e o coletivo se acirrou com o crescimento demográfico. As pessoas tendem a priorizar os interesses individuais e de suas famílias, e isso é no mundo inteiro. Só que, se as pessoas defenderem seus interesses individuais sem limites e sem observar as consequências para a coletividade, o resultado é a degradação ambiental e o esgotamento dos recursos naturais (pesqueiros, florestais, etc.), além da poluição.

Isso se chama “tragédia dos bens comuns”, um conceito clássico que foi definido em 1968 pelo ecologista Garrett Hardin e publicado em artigo na revista Science. Às vezes, achamos que as pessoas destroem o meio ambiente por ignorância, mas a principal razão da destruição do meio ambiente é a prevalência dos interesses individuais sobre os coletivos. A ganhadora do prêmio Nobel de Economia de 2009, Elinor Ostrom, aborda como lidar com a tragédia dos bens comuns. Uma opção seria privatizar os bens, ou seja, não haveria mais bens comuns, cada um tomaria conta do que é seu e exploraria de forma racional seus recursos naturais, como dizemos hoje, de forma sustentável. Mas, na prática, isso não acontece. No Brasil, metade das terras são públicas, concentradas na Amazônia. O que aconteceu? Metade das terras no resto do país foi transformada em área de produção agrícola, pastagem para pecuária, mineração e urbanização. Então, a privatização desses bens e recursos naturais não se demonstrou efetiva para assegurar a conservação da natureza.

Outra opção é ter boas leis, legislação que defenda os interesses coletivos. Isso o Brasil tem. A legislação defende de forma claríssima que meio ambiente sadio é um direito de todos. No artigo 225, diz que é dever de todos conservar o meio ambiente – união, estados, municípios, empresas e indivíduos. O Brasil tem um conjunto de leis ambientais muito amplas, desde os anos de 1960, relativas à proteção da fauna e flora, e especialmente a partir dos anos 80, quando foi aprovada a lei da Política Nacional do Meio Ambiente e, a partir daí, outras várias leis importantes.

A constituição brasileira reconhece as propriedades privadas, mas apenas na medida em que cumpram a sua função social – o que significa, pelo artigo 186, proteger o meio ambiente, usar de forma racional os recursos naturais e respeitar a legislação trabalhista. Isso dá direito ao Código Florestal de exigir que cada proprietário de terra cumpra as leis ambientais nas áreas de preservação permanente protegida – ao longo de rios, encostas, nascentes e topos de morro, e nas reservas legais (RL), que não são áreas de preservação mas de conservação, ou seja, podem ser usadas de forma sustentável. Na RL, o proprietário não pode fazer corte raso e transformar num canavial, por exemplo.

Mas, para ser efetiva, a legislação tem que contar com instrumentos de cumprimento, sou seja, instituições com competência técnica, legal e orçamento adequado para fazer cumprir a lei. Aqui no Brasil, temos um conjunto de instituições federais, como MMA, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversdade (ICMBio), Ibama, Serviço Florestal, Jardim Botânico do Rio de Janeiro, Agência Nacional de Águas (ANA), e outros estaduais e municipais. Temos também o Ministério Público, importantíssimo, com a função de fazer cumprir as leis e a Constituição Federal e com o poder investigar crimes ambientais.

Além disso, temos que educar, fazer campanhas de conscientização para que a população entenda que a legislação ambiental é em seu benefício. Nas escolas, as crianças recebem muito bem os conceitos de meio ambiente e de ecologia – necessidade de conservação, o uso da água e a destinação correta do lixo. Agora, com os adultos, é mais difícil trabalhar a conscientização ambiental.

No Brasil, o que funciona tradicionalmente é o que chamamos de comando e controle. Polícia, fiscalização, multa e prisão. Mas, o Brasil é um país continental e não temos policiais suficientes para fazer cumprir a lei. Temos também a tradição de corrupção, que faz prevalecer os interesses individuais sobre os coletivos, prejudicando a nação.

Outra questão que dificulta a atuação dos órgãos ambientais é a recessão econômica e os cortes orçamentários. O caminho complementar ao comando e controle é a estratégia de incentivos econômicos, ou seja, para quem faz conservação e restauração ambiental chegam benefícios econômicos. Já temos alguns exemplos, como o ICMS Ecológico, que privilegia municípios que conservam mais; o Bolsa Floresta, uma parceria do estado do Amazonas com o Bradesco, que premia famílias que reduzem o impacto ambiental dentro da floresta; o defeso da pesca, que paga salário mínimo aos pescadores durante a época de reprodução dos peixes. O Código Florestal tem um capítulo inteiro dedicado aos incentivos econômicos, mas isso ainda não foi implementado pelo poder executivo, infelizmente.

Então, em resumo, é isso que está faltando no Brasil: ampliar a oferta de incentivos econômicos, combater a corrupção para aumentar a eficácia da fiscalização de comando e controle, e ações de educação ambiental – que deve ser mais prática e menos teórica. Por exemplo, ensinar de onde vem a água que chega em cada casa, a origem da comida, dos remédios, do oxigênio que respiramos.

Qual o papel da Funatura na defesa do Cerrado brasileiro e como o Sr. pretende colaborar com a conservação desse bioma estando diretor-presidente da instituição?

Volto ao artigo 225 da Constituição Federal, dizendo que é responsabilidade de todos promover a conservação do meio ambiente. Em nenhum país o governo consegue fazer sozinho tudo o que é necessário para conservar o meio ambiente. Então, precisamos de organizações da sociedade civil, como a Funatura, para interagir com a sociedade, com os governos e o com setor privado e promover a conservação.

A Funatura foi criada para promover a conservação da natureza, em particular no bioma Cerrado, um bioma que até o início dos anos 70 ainda estava intacto. A ocupação no Cerrado começou em meados dos anos 1970, quando se descobriu que o solo, muito ácido, poderia ser corrigido com calcáreo e adubação e se tornar produtivo. Hoje, metade da produção de alimentos no Brasil é feita no bioma Cerrado. Então, o Cerrado tem sido a grande fronteira agrícola nos últimos 50 anos. Isso tem um lado positivo, que é o aumento da oferta de alimentos dentro e fora do país – o Brasil se tornou um grande exportador de alimentos. Isto contribuiu para a segurança alimentar e gerou empregos e renda. Só que foi feito às custas da vegetação nativa – já perdemos metade do bioma. É muita coisa em 50 anos. Todo mundo se preocupa como desmatamento e queimadas na Amazônia, mas as taxas no Cerrado são maiores e não têm grande visibilidade. A Amazônia recebe grande atenção da mídia e dos especialistas no Brasil e no mundo.

Existe uma pesquisa chamada O que pensa o brasileiro sobre o meio ambiente?, coordenada pela pesquisadora Samira Crespo, que mostra como melhorou a opinião pública sobre o tema de 1990 a 2012. Mas, ainda assim, mesmo na última pesquisa, só metade dos entrevistados soube responder o que é uma Unidade de Conservação e quase ninguém sabe que o Cerrado é o bioma mais degradado de todos depois da Mata Atlântica. Quando perguntados sobre qual o ecossistema mais ameaçado, todos responderam Amazônia, quando na verdade é Mata Atlântica e, em seguida, Cerrado, Caatinga e Pampa. Amazônia e Pantanal são os dois biomas menos degradados. Temos que tentar corrigir isso com uma maior cobertura pela mídia sobre o Cerrado, que é o 2º bioma com mais espécies ameaçadas de extinção e o 2º mais rico em biodiversidade (Mata Atlântica é o 1º e Amazônia, o 3º) de espécies conhecidas cientificamente. Infelizmente, essa falta de conhecimento sobre a importância do Cerrado leva as pessoas a não reconhecerem essas pressões que o bioma vem sofrendo.

O Cerrado é a caixa d’água do Brasil. Destruindo-o, todas as regiões sofrerão consequências indesejáveis por falta d’água. Então, a criação da Funatura foi importantíssima – foi 1ª grande ONG criada para atuar nesse bioma. Nas últimas duas décadas, tem havido a criação de outras ONGs que focam no Cerrado, o que é muito positivo. A Funatura conseguiu desenvolver uma série de iniciativas importantes, como o apoio à criação e gestão de Reservas Particulares de Patrimônio Natural (RPPNs), que temos que ampliar. Essa experiência pode ser levada aos proprietários de terra para conservarem suas Reservas Legais e Áreas de Preservação Ambiental (APPs).

Outra atuação importante da Funatura está no apoio à criação de Unidades de Conservação e elaboração de planos de manejo para elas. Uma das áreas de foco tem sido o Mosaico Grande Sertão-Veredas. Me orgulho de ter sido um dos pesquisadores que coordenou a expedição e identificou a área selecionada para a criação do Parque Nacional Grande Sertão Veredas. O mosaico tem gerado muitas parcerias e resultados que podem ser expandidos para outras áreas do Cerrado, como um novo modelo para conciliar o desenvolvimento com a conservação.

O cenário atual é de total ameaça à biodiversidade e à conservação do Cerrado e outros biomas ameaçados. Como o Sr. vê o futuro e quais as ações mais urgentes para frear o desmatamento e o uso indevido dos recursos naturais?

Temos um grande desafio daqui para a frente que é a questão do financiamento da conservação. Estamos vivendo uma crise recente, porque boa parte do financiamento para conservação tem sido público nacional ou internacional. Com a crise econômica no Brasil desde 2014, os orçamentos governamentais foram drasticamente reduzidos. Agora, com a pandemia do Covid-19, todo recurso está sendo direcionado, corretamente, para essa crise. Então, para este ano e os próximos, a tendência é que tenhamos um cenário de muita dificuldade de financiamento para a conservação. Teremos que ser mais criativos.

Também tivemos problema, no atual governo brasileiro, com a interrupção do funcionamento do Fundo Amazônia e de vários projetos do GEF (Fundo Mundial para o Meio Ambiente). Esses projetos passam pelo MMA e em grande parte são administrados por outras organizações como o Funbio.

Infelizmente, a política do atual governo é não reconhecer o papel das organizações da sociedade civil e isso tem dificultado ainda mais o acesso a recursos financeiros para ONGs. Vamos ter que nos reinventar, pensar de forma criativa em outros modelos de financiamento para a conservação. A minha expectativa é que elaboremos propostas que unam a conservação ao uso sustentável da biodiversidade, gerando retornos econômicos que sejam reinvestidos em conservação. Nas últimas décadas, no Brasil, os setores econômicos mais vibrantes e que têm mais recursos são a agropecuária e o setor financeiro. Precisamos de um trabalho maior junto a esses dois setores para convencê-los de que é uma obrigação deles, por lei, contribuir para a conservação e para a restauração ambiental, tendo benefícios em termos de competitividade e redução de desperdícios.

 

Entrevista concedida a Letícia Verdi, jornalista na Funatura. 

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