Grande sertão & Grande sertão veredas

Por Funatura

8 de julho de 2024

Artigo de Cesar Victor do Espírito Santo

Coordenador de projetos da Funatura e membro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama)

 

Como amante da obra de João Guimarães Rosa, especialmente do romance Grande sertão: veredas, confesso que fiquei apreensivo e um pouco indignado com a produção de Grande sertão, filme de Guel Arraes e roteiro de Jorge Furtado, baseado na obra de Rosa. Fiquei pensando como poderiam ter a coragem de “brincar” com uma das obras mais importantes da literatura brasileira e mundial, um orgulho para o Brasil. Não concebia a ideia de que o cenário da obra poderia ser completamente diferente do que está no romance, tendo em vista que um dos objetivos de Guimarães Rosa foi justamente retratar o sertão do Brasil profundo, com suas mazelas e belezas características dessa região.

No entanto, ao assistir ao filme, coincidentemente na semana em que se comemora o nascimento de Guimarães Rosa, 27 de junho, vi que estava completamente enganado. Fiquei totalmente bem impressionado não só com a excelente produção, como também com os atores, todos, especialmente Caio Blat, que dá um verdadeiro show, tanto na fase jovem de Riobaldo, quanto na fase em que, mais velho, relata os fatos marcantes da sua saga. Também o cenário, que mais parece uma favela futurista, que mostra a realidade de uma sociedade na qual impera a “lei do mais forte”; de um lado, os “barões” da bandidagem, e, do outro, os “agentes da lei”, imersos na corrupção, com as comunidades tendo que conviver com o fogo cruzado e com todo tipo de injustiça social, assim como nos dias atuais.

Aí vemos quão grandiosa é a obra de Guimarães Rosa, pois não se trata de uma literatura regionalista e datada, mas, sim, de uma obra que alcança uma linguagem universal e atemporal. Daí, a possibilidade de transpor o roteiro para outras realidades. Conforme ressaltado por Antônio Cândido, um dos mais importantes críticos literários brasileiros, trata-se de uma obra que tem um caráter metafísico: “Não é uma obra regionalista, pois toca em problemas universais, problemas que atormentam o homem em qualquer parte do universo. Quem sou eu? Quem é você? Deus existe ou não? O diabo existe ou não? O que é o bem? O que é o mal? O culpado é ele ou sou eu? O homem faz o meio ou é fruto do meio? Em Grande sertão: veredas a terra não condiciona o homem, e o homem não condiciona a luta. Não há relação causal. Os três estão no mesmo plano, tudo está embaralhado. O sertão é o lugar onde a vontade do homem se fez mais forte que o poder do lugar. O bonito em Grande sertão: veredas é a extrema ambiguidade, é fluido, as coisas são e não são, tem o lado do bem e o lado do mal. Todas as vezes que se faz o mal, sem querer, se faz o bem. Isso é um paradoxo, a ambiguidade máxima”.

Assim, saí feliz do cinema e mudei completamente meu sentimento inicial, e acredito que Guimarães Rosa também estaria feliz. Conversando com Lucas, meu enteado, que faz artes cênicas na Universidade de Brasília (UnB), ele colocou algo interessante. Acredita que Guimarães Rosa se sentiria honrado em ter sua obra passando por uma releitura, sendo transposta para uma realidade atual, em um cenário completamente diferente, de forma corajosa e que quebra a nossa ideia de sertão.

(Publicado no jornal Correio Braziliense, em 03/07/2024)

 

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