A água que você bebe vem do Cerrado, sabia disso? Poucos sabem, porque parece difícil entender como uma região conhecida por sua seca extrema possa ser apelidada de “caixa d’água do Brasil”. Para amplificar esse conhecimento, o festival Ilumina convidou um time multidisciplinar, que dialogou sobre o tema no último sábado (10/09). A mesa foi composta por Ane Alencar (IPAM), Mercedes Bustamante (UnB), Yuri Salmona (Instituto Cerrados), Tuya Kalunga ( comunidade Kalunga Tinguizal), Pedro Bruzzi (Funatura) e Bruno Garibaldi (artista e pesquisador da natureza).
Simbolicamente localizado no coração do Brasil, o Cerrado bombeia água (e vida) para todo o Brasil. Do alto do Planalto Central, sua geografia concentra nascentes, rios e bacias hidrográficas e aquíferos que escoam água para 8 das 12 principais regiões hidrográficas do Brasil e abastece 6 das 8 grandes bacias hidrográficas do Brasil. Por esse motivo, Ane Alencar anfitriou o diálogo lembrando que as transformações que o Cerrado vem sofrendo estão impactando todas as regiões e biomas brasileiros. Para que os participantes tivessem uma visão sistêmica das mudanças, Ane apresentou um infográfico sobre a Evolução anual de cobertura e uso da terra no Cerrado, que faz parte da coleção de estudos no Mapbiomas (download aqui).
Em sua pesquisa, Yuri Salmona analisou a dinâmica de mais 81 rios, desde 1985 até os dias de hoje, em relação às mudanças naturais e aos impactos causados pelo uso do solo. O resultado é que já perdemos o equivalente a um rio Mississipi, mais de 19 mil metros cúbicos de água por segundo. Ele alerta: em 50 anos teremos perdido mais um rio. E essa situação é mais drástica em áreas com maior número de pivôs de irrigação para a produção de monocultura de larga escala.
Segundo a professora Mercedes Bustamante, é preciso olhar as águas do Cerrado em suas múltiplas dimensões: a da diminuição de vazão, do retorno atmosférico, do uso da terra, da relação água e fogo, do acesso à água, entre outros. Ela aponta que quem tem mais acesso à água é, também, quem mais a torna escassa. Esse uso contribuiu para que o aumento médio de temperatura do Cerrado esteja acima da média global. Mercedes enfatiza a importância do Cerrado para as relações ecológicas entre biomas. “A água não reconhece fronteiras e ela interliga todos os biomas”, conclui.
“Vejo a água como o líquido da vida. Ela nos nutre como o leite de uma mãe”. Foi com essas palavras que Tuya Kalunga compartilhou a conexão ancestral de seu povo com o Cerrado, seu corpo-território. Para a liderança quilombola, as ações destruidoras são como uma infecção generalizada, sobre a qual o Cerrado tem feito um grande esforço para sobreviver. Tuya traçou uma belíssima alusão entre terra, vegetação e água como parte do corpo humano. Segundo ela, para seu povo, o território é um ancestral que se fosse visto apenas como “terra” seria algo a ser usado e não a ser cuidado.
Em consonância com Tuya, Pedro Bruzzi, superintendente executivo da Fundação Pró-Natureza – Funatura, destacou a importância da vegetação nativa para o ciclo da água. Ele explicou que o desenvolvido sistema radicular da flora cerratense atua como uma esponja levando água para os lençóis freáticos e deles para os aquíferos. “A compactação do solo, o seu desgaste e a substituição da vegetação fazem com que a água deixe de se infiltrar no solo e passe a correr sobre ele, trazendo uma série de consequências como o assoreamento dos rios e a diminuição da vazão”, alerta. Para Pedro, não é possível pensar em conservação dos recursos hídricos brasileiros sem políticas públicas de preservação do Cerrado. Ele também aponta como alternativa de participação da iniciativa privada, a criação da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), como instrumento de proteção dos mananciais.